sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Milan Kundera me console


Em São Paulo sou preta, na Bahia sou branca.
Na Bahia meu cabelo é liso, em São Paulo meu cabelo é ruim.
Eu sempre fui rica de mais para ser considerada pobre,
sempre fui pobre demais para ser rica
Esta pequena dificuldade de enquadramento sempre fez com que eu me sentisse excluída
Nas comunidaes pobres por onde ando, sinto-me culpada por ter uma casa própria, sólida, e por ter o que comer todos os dias.

No metie dos ricos, sinto-me suja, ignorante e desatualizada por não poder compartilhar de suas novidaddes tecnologicas e de seus conceitos de moda. O desejo consumista é superfluo e caro. As vezes passo em frente a uma loja e seus produtos viram objetos de desejo. Crio em mim a necessidade desses produtos, necessidade que não existe de verdade, mas que eu crio e por isso necessito. Por não poder comprar, sinto-me excluída. É semelhante a uma fome. Lógico que não tao grave ou dramatico como passar fome estomacal, mas fico faminta e vou pra casa frustada. com o estômago mental roncando.

Eu e meu marido somos de famílias um tanto abastadas, e tudo o que temos devemos a nossos pais. Sem eles, ou o que eles nos deram, somos pobre-pobre-pobre-de-marré-de-ci.

Pois, quando estou na labuta do meu dia a dia (eu não preciso trabalhar pra comer e isso me torna rica, mas eu passo o dia todo nos afazeres da casa, e isso me revolve à pobreza), penso as vezes em Bruna, que foi a primeira namorada de Breno. (Olhem bem que eu não penso em Bruna com ciúme ou inveja. Acho ela linda mesmo e super legal....apenas a utilizo para fins reflexivos). Breno sempre a descreve como uma garota 'capa de revista'. Linda,
loira, gostosa. Na praia, as pessoas se apressavem em fotografá-la. Se fazia top-less, era briga na certa. E pra melhorar, Bruna é rica. Nasceu rica - o que a torna ainda mais linda. Bruna nunca teve que sujar as unhas no bombril, nunca suou às bicas cavalgado com bravura um rôdo.

Linda, loira e rica. É o ideal de vida que todas as mulheres do mundo gostariam de viver. A vida de Bruna é um sonho. Não é realidade. (Bruna não deve comer pao com manteiga porque é o que tem, nem nunca lhe faltou dinheiro pra comprar um remédio)

As vezes me pergunto se Breno e Bruna tivessem se casado, ela estaria aqui limpando o chão de joelhos, ou estaria Breno empresariando em Salvador?

Me falaram da leveza e do peso. (A mim também Celo)
Será que a leveza da vida de Bruna a levará ao peso por nunca ter tocado a realidade?
Ou talvez eu encontre a leveza no final do dia, quando depois de lavar, cozinhar, limpar, varrer, arrumar, encontre a casa finalmente limpa, ainda que por alguns minutos. Ou ainda, a leveza me venha no final da vida, quando eu olhar pra traz e ver que valeu a pena.....enfim....Milan Kundera, me explique!

Ainda não encontrei a leveza do meu fardo.
Chego ao final do meu dia cansada, pesada. Mais feia, mais velha e secretamente triste.

Triste não porque queria ser rica, ou loira (ainda sou linda tá!), mas porque pra varrer e lavar roupa não é preciso pensar.

Varrer e lavar roupa atrofiam o cérebro. E eu, que adoro pensar, perguntar, estudar, passo o dia todo atrofiando meu cérebro.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Parabéns aos machos desta casa




Era aniversario do papai, trintão...lingo, gostoso e orgulhoso, maduro e moleque


Era aniversário de Guy, 8 meses, forte, pesado e sapeca.....10,6kg


Fomos tomar banho de rio, comer feijão na beira do fogao de lenha, tomar cafe da roça, remar canoa, jantar a luz de velas...pedir a força dos orixas na caxoeira


Ficamos nesta casa aí, na beira da caxú......um presente de nossos amigos-anjos




































Mulheres da vida

Eu sempre invejei as prostitutas, e sempre me senti fraca diante delas. As prostis, como sabemos, são mulheres da vida. E nós, as não prostis, o que somos? Somos as mulheres dos nossos contos de fadas. Revivendo as histórias que ouvimos, por medo de pisar no chão. As meninas da vida não revivem o velho relato dos contos, com seus finais 'felizes'. Elas caminham pelo desconhecido e isso as torna reais, 'da vida'.

Eu mesma, mulher de-faz-de-conta, conheci raros homens que já foram a bordéis. Os homens dos meus contos nunca foram a bordéis, não precisam disso, jamais pagariam pra ter uma mulher.

As mulheres da vida conhecem os homens da vida: nossos maridos, nossos amores, nossos pais e nossos filhos reais.Nós só conhecemos homens que não existem.

Isso me faz lembrar um pequeno escritor (pequeno não na escrita, mas no tamanho) amigo meu que fala francês. Outro dia, eu e Meu Amigo Pedro recebemos a visita de um colega frances, fotógrafo da Magnun, que viaja o mundo vivendo e grafando os bordéis de sua vida. Para ciceronear nosso colega, Meu Amigo Pedro sugeriu levá-lo a um bordél no Largo da Batata, nossa morada. Mas Meu Amigo Pedro não fala frances, nosso colega tampouco fala português e eu, lembrei do pequeno escritor. Liguei para ele pedindo que os acompanhasse e ele recebeu meu pedido como uma ofensa mortal.

"Fernanda, eu jamais iria a um puteiro", disse ele quase com nojo.

Resultado: eu, que não falo frances, mas falo espanhol, guiando nosso fotógrafo pelas luzes vermelhas de sampa.

E o que eu vi nestas casas da vida? Homens, muitos homens - por incrível que parecesse. Homens vindos de um mundo mais real que o meu. Estavam lá meus amigos, meus amantes, meu pai, meu filho, estes homens que dizem a nós, mulheres de contos, que eles nunca vão às mulheres da vida. Até os pequenos escritores, que jamais iriam, estavam lá.

*

Era quase madrugada. Guy tinha acordado animadíssimo e em mim e em Breno bateu aquela fome. Fomos no posto de gasolina, onde uma chapa 24hs fabrica o sanduiche mais podrão da cidade - o mais consumido, o mais real.
Chega uma doida, com a boca travada, com idade de criança e atitude de experiente. Uma mulher da vida de Itacaré. Conhecia Breno. A mim chamava de 'gata', como se eu fosse uma menina inocente e mimanda, que deve ser elogiada, e a quem não se pode contar as coisas da vida. Eu me sentia mais que isso. Sentia como se fosse um quadro na parede, destes que mechem os olhos e a tudo observam. Meu desejo era pular da parede para a sala, do gesso para a vida.

Aquela menina da vida abraçava meu marido como se fossem bons amigos. Estava sinceramente emocionada (estava travada é claro). Pegava em seus ombros e se demonstrava feliz em ver Breno com sua mulherzinha e seu filhinho. Ela parecia conhecer nele o homem que eu nunca conheci.

Eu era a mulherzinha, calada pela fome, sentada no banco, devorando com gôsto um hamburquer que eu nem gosto, comendo aquela comida de mentira.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Meu mundo por um jogo de Le Creuset


Em outros tempos, eu olharia pro céu e planejaria uma fuga estrada afora, talvez comprar um fusca e me mandar pra amazônia, talvez viajar de moto pelos vales de Minas Gerais, talvez me esconder do mundo e ficar de junto às baleias nas praias geladas do sul do país. Mas minha atualidade é outra, e sem querer, eu, em plena noite de namoro com meu conjuge, olhei pro teto e pensei como seria bom ter um jogo de panelas le Creuset. Pensei que, pelo valor de mercado destas jóias da cozinha, jamais compraria uma, mas imaginava alguém que pudesse presentear-me-as.

Quando solta, solteira, eu sonhava com uma estrada sem fim, numa caranga movida a vento. Hoje, casada, dona de um lar, amarrada a manutenção da posse, sonho com as le creuset.

Moral da história: você pode produzir os sonhos mais profundos, almejar as estrelas mais distantes, mas a realidade te esmaga.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Hein minhas tias, já tive seis meses


Logo aí aprendi a sentar, e já tomava banho na bacia, brincando com a água, e quando ninguem tava vendo, eu me curvava pra beber a água da banheira, era muito interessante.
Eu falava "na badava namama guagruuuuuuu e papa", também "griiiiiiiii" Quando bravo eu falava "mau mau mau mau". Quando queria que me olhassem, falava "É - ébua-á". Eu sei que é uma linguística muito complexa, mas sempre funcionou.


E eu tento engatinhar e meto a testa no chão, choro um pouco e depois eu mamo e durmo.
E tenho uma caixa de remédio velha que é meu brinquedo mais querido.
Já quebrei um copo, derramei um café, picotei um jornal e meti a mão no prato de papinha.
Ah, já como papinha, e fruta, e água de cocô, e só.
Tem um dente na minha boca que já rasgou a gengiva, e ninguém viu, não doeu, nem chorei, quando vi, tava aqui.
Eu vivo caindo da cama, do sofá, do colchão.
Chego na praia, logo durmo. Minhas vacinas estão em dia. Tá tudo supimpa.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Cadê meu ser caótico?


Mamães que leem este blog, respondam-me por favor, por onde anda o ser que vos habitava antes de tornarem-se mães?
Eu ia andando pela rua meio tranquilamente, portando um tripé e uma câmera. Ia fazer as fotos de uma livraria na orla e Guy ficou com Breno. Carla, uma colega nossa, mãe de dois filhos pequenos (Caléu de 9 meses e Rudá de uma ano e meio) ia passando de bike, meio apressada, com os pães.
Cadê o Guy, perguntou sem parar a bike. Tô sozinha hoje, livre!!!. respondi entusiasmada. E ela: ai que delícia!!!
Imagino que pra Carla a conotação de 'estar sozinha' deve ser muito maior pois ela, com dois pimpolhinhos, deve conseguir este feito com muito menos frequência.

Continuei minha caminhada rumo à livraria. Como seria bom se nós mães pudéssemos dar-nos mais a este deleite: ficar sem os filhos. Cheguei no local das fotos, o portão fechado, as janelas cerradas, ainda era manhã. Não serei impertinente em bater e tirar as meninas do sono, ou forçá-las a receberem-me de pijamas. Dei meia volta e pensei: vou aproveitar pra fazer alguma coisa e....
Que coisa? que posso fazer nessas duas horas de liberdade? Aí me deparei com um muro. Eu nao tenho nenhuma idéia, a não ser voltar pra casa.
Quero dizer....fico rezando pra Guy pegar no sono e quando ele dorme fico feito barata tonta pela casa, procurando o que fazer, sem no entanto encontrar. Finalmente ligo a internet e vou ler, escrever, pesquisar, mas o fato é que sem vigilância, acabei sumindo, por um tempo que já nem sei mais como calcular. E hoje, no meu tempo livre, me senti vazia como há muito não sentia. (Desculpem minhas queridas amigas, vocês a quem eu sempre preguei a liberdade total e o respeito integral às próprias vontades)
Sem vigilância, o ser caótico que me habitava escapou ante a paisagem bucólica do casamento.

(Mas ele, a entidade do movimento, não deve ter ido muito longe, vou já buscá-lo).

O vovô eterno faz a passagem


Vai em paz Bizo,
Te recordamos com carinho,

a importancia que teve em nossas vidas
manda um cheiro pra Vovó, dí-lhe de nossa saudade

Olha por nós

nós que temos que viver

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Retrato para posteridade


29/07/09

Ontem foi muito legal. Nós acordamos as sete e você já tinha feito 3hs de jejum. Tomou o remédio e ficou lá embaixo com teu pai enquanto eu preparava o café. Depois você mamou. Nós tomamos um banhão gostoso debaixo do chuveiro, papai te vestiu um macaquinho fresquinho. Neste dia agente tava meio na pindaíba, tínhamos dez reais e decidimos: no lugar de comprar uma bandeja de frango, compramos uma siripóia.

Ao invés de ficarmos todos encorujados, mamãe varrendo, papai cozinhando e depois todo mundo passar o resto da tarde dormindo, fomos para o pontal pescar siri. Era comida, lazer e diversão na certa. Fomos os três de moto até a balsa onde conhecemos o seu João Sirilo, um senhor forte, firme e cego, que conversa olhando no olho. Ele é lá da Mata Grande e combinamos de tomar um café na casa dele qualquer dia desses.
Bem, compramos a siripóia e teu pai pegou umas catrevagens de peixe na peixaria. Atravessamos de canoa, era meio dia, veja só! E você protegido pela sombrinha de Dona Antonia.
Arrumamos a sombrinha na areia feito guardassol, esticamos a canga, ajeitamos o travesseiro e te acomodamos.
Papai lançou a siripóia e a festa começou. O dia estava lindo, quente e gostoso, pegamos muitos siris. Papai tomava um baile pra desgarrar o siri da póia, foi muito divertido. Eles queriam fugir e teu pai cercava, jogava areia em cima deles, pelejava. Eu derrubei o balde dos siris, todos saíram correndo e foi uma luta só, mas não perdemos nenhum. Você dormiu um pouco e eu fui tomar um banho. Depois te levei na beira do mangue, você adora a natureza e o barulho dos pássaros, o brilho da água e até o vento no rosto você adora. Quando acabou, estávamos tudo e todos devidamente cheios de areia, levantamos acampamento e subimos na balsa.
Em casa você logo quis mamar e dormimos os dois. Quando acordamos teu pai tava de banho tomado e, no fogão, uma bela moqueca de siri. Tinha um vivo que pegou no dedo de seu pai, ele chacoalhou, o siri bateu no teto e saiu correndo pela casa. Agente lá em cima só ouvindo a confusão e dando risada.
Eu comi uns 4 ou 5 siris, teu pai uns 7 ou 8. Nos lambuzamos todo, foi outra bagunça. Tava uma delicia, proteína gostosa, divertida, temperada com o orgulho de termos pego nós mesmos. Seu pai avisou todo mundo inclusive. 'Olha o siri que peguei!'
Tomamos outro banho e seu pai foi passear com você pra eu poder lavar a cozinha. Você tomou um suco de lima na chuquinha e dormiu. Teu pai e eu fizemos amor e dormimos gostoso. Foi um dia incrível, yes, nós nos amamos, yes, nós sabemos pescar, sabemos viver.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Quem sou eu

Eu sou uma mãe, como qualquer outra mãe. Que deixa de ser quem é, algumas horas do dia, alguns dias da semana, alguns meses no ano. Quando nao sou poeta, sou piegas. Pra ser um clichê, sou leoa. Nao fugi de mim, nao desapareci - quero crer. Estou empenhada em dar amor a quem dei a vida. Uma aventura como tantas outras. A mais especial porem. Volto a ser eu quando posso dormir, quando posso sonhar, e nas vezes que posso decidir sozinha. Ainda ando de moto, ainda escalo, pedalo, jogo capoeira, atravesso o rio, me banho na fonte. Ainda volto aos índios. Tenho ainda uma mochila e uma rede. Ainda bebo, ainda fumo, ainda leio, trepo ainda. Mas porem contudo todavia, carregando minha jaquinha. Craquenta, viscosa, grudenta, gostosa, deliciosa, unguenta. Cheirosa, nutritiva, pesada, calorica. A jaca minha.

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

O curioso caso do vovô eterno

Outro dia liguei pra minha mãe e ela me relatou seu atual drama. Está com meu vozinho em casa. Ele quebrou – desfacelou- o fêmur e não vai mais poder andar. Mamãe esta envolta em fraldas geriátricas e cocôs, dando de comer na boca e limpando as sobras, dando banho, vestindo e despindo o velhinho de 90 anos. Ela não pode mais sair de casa ou fazer coisas outras que não seja zelar. Eu disse, então tudo bem, não é muito diferente da minha rotina com Guy.
É que os velhinhos são nada mais que bebezinho de novo. Ou bebezinhos ás avessas. Estão voltando para o útero, voltando para a terra. Diluindo-se nos elementos dos quais ele é feito.
Todo mundo é louco por um bebezinho fofinho, achando graça quando ele peida ou baba, mas ninguém quer saber de um velhinho empoeirado, vivido, e que já deu, pra você e para o mundo, o que tinha que dar.
Para o bebê agente faz tudo de bom grado porque agente dá de comer e vai vendo ele crescer. O vovô você dá de comer pra ver fenecer. O bebê enroladamente vai aprender a falar e cada vez mais vai se comunicar com você. O vovô vai desaprender a falar, e quanto mais você se esforça para compreendê-lo, mas sem esperança você fica. Dá até vontade de fingir que entendeu e sair de fininho. Quando o bebê dá seus primeiros passos, você logo entende que ele está indo para o mundo, vai te encher de alegrias e orgulhos. O velhinho você pega na mão pra ele desaprender a andar. No auge de seu peso morto e pesado, em ti vai se apoiar. Quando a criança for à escola e a tia disser que ele é muito inteligente, você imaginará o futuro brilhante que ele pode ter. E todo esforço será recompensado. Ele vai te pegar no colo e dizer, mamãe você é a melhor mãe do mundo.
Enquanto o bebê tem o mundo pra conquistar e te dar de presente, o velhinho já não vai dar em nada. Pra ele, todo se esforço, seu tempo, paciência e dinheiro são exclusivamente para que não se sinta abandonado em seu leito de morte.
Nós deveríamos aqui fazer um pacto, e já o digo por mim: o de não prolongar a vida de um velhinho moribundo. Quando o galho secou, por mais que ainda haja folhas verdes, não adianta botar água no vaso. Esforcemo-nos apenas para evitar-lhe a dor e o sofrimento, mas esqueçamos a tecnologia e a ciência se for pra prolongar uma vida cansada, fazer pegar no tranco um órgão falido. Obrigá-lo a continuar funcionando a qualquer custo, só porque julgamos que deste lado é melhor.
Deixemos ir os velhinhos, seguir o curso da natureza, e apenas estejamos lá para segurar-lhe a mão quando fizer a passagem. Ele vai saber que não está só, e que tudo o que ele fez por nós valeu a pena de verdade. Seja lá o que ele tenha acertado e errado, foi bom. Muito obrigada por tudo, pode deixar que daqui vamos sozinhos.
O vovô foi esquecido neste mundo. Tem um câncer de próstata a mais de 10 anos, e este nunca se manifestou. Seus pequenos sintomas foram sempre curados com ervas, unguentos e compressas de argila. Na foto de debutante da mamãe, ele já era velho. Ele sempre foi velho. Acho que nasceu assim. Era o mais velho e capenga de todos os quatro avós, mas foi no enterro de todos os outros três. E você acha que ele tem um pé na cova? Ledo e Ivo engano, ele só quebrou mesmo o fêmur, nada além disso. Estamos preparando um testamento para deixar pra ele quando morrermos.
Pode ir em paz vovô, você não vai precisar mais me amarrar os sapatos. Vai ser simples pra mim, talvez nem tanto pra você, como naquele primeiro dia de aula, quando você deixou aquela mulher me pegar pela mão e me levar pra dentro daquele corredor infinito, aquela incógnita. Você me acenava sorrindo, eu ia chorando, perguntando por que é que eu não podia simplesmente ficar com você.
Pode parar de chorar vovô, que quando chegar lá você vai ver que é legal.
Quisera os velhinhos morrer como Benjamin Button, no colo da mulher amada, como um bebe que adormece tão serenamente que um simples sopro de vento leva-o a um lugar muito, muito menos sofrível.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

A bruxa e a estrada, um velho caso de amor

Era sete da noite. Guy, cansado de uma tarde na praia, mamava bem espaçadamente, de olhos fechados, imóvel e sereno, sinal que já ia dormir. Breno subiu as escadas reclamando de dor de cabeça e se deitou, sinal claro de que já ia capotar. Eu, maquiavelicamente, fiquei bem quietinha. Não buli com Guy, não puxei assunto com Breno. Instintivamente detectei uma oportunidade rara: a de ficar sozinha. Nossa! quantas coisas legais eu poderei fazer quando ficar sozinha, coisas que eu nunca mais fiz, que adoro fazer, e que já até me esquecera. Mas agora! agora parece que vou ficar sozinha-inha-inha de marré-de-ci.

Confirmado. Guy capotou e Breno dormia digamos, feito um bebê. Levantei da cama bem de fininho, sem fazer ruído, sorrateira como um pé de pano, temerosa como quem vai fazer algo de errado. Desci as escadas e quando me vi sozinha mesmo, sabem o que eu fiz?

Nada, maravilhosamente não fiz nada. Aliás, fazer nada é uma atividade profundamente necessária. Sim, que tomei um chá, me depilei, vi o jornal, rodei pela casa, me joguei no sofá. Mas acima de tudo, pensei. Pensar denota tempo e uma certa dose de ociosidade.

Vi que em mim mora ainda aquela bruxinha maluca, doida, incauta, sedutora. Que vive a lucidez e rebentos de criatividade na solidão. E percebi que ela ainda tem o poder de me levar daqui, que ela planeja, aguarda a hora certa. Calma e maquiavélica, ela ainda vai me tirar do sossêgo e me levar dar uma banda pelo mundo. Vai bagunçar toda a nossa vida, bagunçar o que já está certo em mim. Vai gerar polêmica com seus quereres irredutíveis. Vai deixar muita gente preocupada.
Tirar-me do lugar comum de uma vida de casamento terá um efeito certeiro: a própria sobrevivência deste.

Quer saber, não vou fazer a menor força para amarrá-la.

terça-feira, 7 de julho de 2009

Guy, noticias pra você ler mais tarde


Guy
Tu estás crescendo, já pesas o dobro de quando nasceu, ja estão caindo teus cabelos primeiros, já preenches mais o espaço no berço. Aquelas roupas que compramos numeração RN já não te servem mais. Já nos encara fortemente, tens um olhar de quem já sabe e está cansado de ensinar. Sorris, dia e noite, noite e dia, antes durante e depois das mamadas, pra quem te encontra na rua, pras maluquices do seu pai. Já sabes do jejum matutino e acordas rindo. Tua gengiva ja coça, anunciando a chegada dos dentes, por isso babas e colocas a mão na boca. Já nos acopanha com a cabeça, já não és mais aquele bebê mólão. Ainda não sentas, mais estás no tempo certo, vais fazer 4 meses.

Já tomas os objetos nas mãos, elas buscam principalmente comida. Tu tens fome, não te saftisfaz plenamente o leite exclusivo. E dizes isso! Tu conversas . Falas o tempo todo, fala tudo, alta e claramente. Infelizes daqueles que não te podem compreender. Já puxas o meu cabelo, e me acaricia o seio.

Tu és quente. Suas, tens um fedozinho de suor delicioso. E que ninguém te aprisione a uma coberta. E tu tens vontade, olha vejam só! Tem mais coisas que gostas de que as que não gostas. Um exemplo? Adoras o lustre do quarto, aquela bolona com folhas secas. Não gostas do chocalho de palhacinho. Adoras a natureza, a agua é super divertida e as árvores o distraem por longo tempo.

E ris. quando te coloco no berço, quando te coloco no pufe, na cadeirinha de treking, no canguru, na moto, ris. Pra tomar banho, antes, durante e depois de dormir. Tu ris tanto que, perdoe-me o clichezásso, és a alegria da casa mesmo. Até nos dias de desilusão, de perrengue, de cansaço, tu nos cura. Pra ti nos curamos.

Guy, já és visto aventurando-se de moto pelas matas fartas desta Bahia à beira mar. É quando relaxas. Atá cair já caíste, mas quer saber? nem sequer acordaste do sono do sacolejo.


És um baiano feliz.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

A mata para nosso filho



Guy significa menino da floresta, é abreviação carinhosa para Guido, nome comum na Italia, vem do Teutônico Gwido, que significa bosque ou floresta.
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Pela primeira vez eu respirei aliviada ao ouvir uma notícia sobre a amazônia. Pelo menos 35 empresas já confirmaram ao Ministério Público Federal que deixarão de comprar gado ou derivados que tenham como origem os pastos recém-desmatados no Pará. Associar a pecuária ao desmatamento desenfreado na amazônia já é comum, todo mundo sabe que uma coisa leva a outra, agora nunca entendi porque as pessoas não associam a pecuária ao seu prato de comida. Ou será que você pensa que todo aquele gado é apenas pra consumo local?
Você acha os pecuaristas uns monstros, e devota toda sua esperança pela sobrevivência da amazônia na luta dos ecologistas e na utópica crença que um dia quem sabe os políticos façam alguma coisa. Agora olhe ao seu redor e identifique a amazônia na sua casa. O que tem aí de madeira? O último móvel que você comprou era de quê? E o que você comeu hoje?
Ser realmente um defensor da natureza é para poucos. Digo isso por mim. Outro dia passou um crente panfletando pela sua fé - ou para sua igreja - e eu -que adoooooooooooro crente!!! - dei uma de louca com ele, dizendo que aquele panfletinho tinha derrubado uma árvore e que se ele respeitasse a Deus deveria respeitar a natureza. Bem, ele ouviu pacientemente meu surto e olhou pra minha casa. " E a sua casa, é toda de madeira", disse ele.
Olha aqui seu ximbungo, eu não mandei construir essa casa. Se eu tivesse construido-a, seria bem diferente, mas ok!, um a zero pro crente .
O pior foi o caso da cômoda de Guy. Eu ia mandar fazer uma de bambuzinho, que é mais leve, mais barata e mais ecológica. Toda fechadinha, ia pintar de branco e spray verniz. Não seria eterna, mas tem mais a ver com o nosso contexto.
Mas Breno não! Tem que ser de madeira, que é melhor, dura mais, mais bonita, apresentável - e muito mais cara por sinal. Disse que queria o melhor pro filho dele.
Ora, hipócritas! o melhor para vossos filhos são as árvores vivas! Mas a árvore já está morta, argumentou. E se você comprar esta matarão outra pra por na loja. É tão simples, tão lógico, tão matemático.
Por isso respiro aliviada, até que enfim ouço uma ação real de bom senso em benefício da amazônia e do futuro dos nossos filhotes.
Ah! quanto à cômoda, não entramos num consenso. Eu não consigo suportar a idéia de uma comoda de madeira - moro no meio de uma mata atlântica em extinção. O impasse prevalece e as roupas de Guy estão entre as nossas.
E, para o crente: eu moro com meu filho numa casa de tijolo, cimento e madeira, no centro da cidade, mas é porque sou pobre. Se eu fosse rica, morariamos numa cabana isolada no meio da mata, na beira de um rio, com certeza!

quinta-feira, 11 de junho de 2009

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Os livros não são sinceros


Durante a gravidez, na ânsia de conhecer como seria a nova vida com o bebê, li uma batelada de livros, artigos e fiz incontáveis consultas a internet. Queria saber o que ia enfrentar, principalmente pra aprender de antemão a lidar com situações delicadas.

De antemão nada.

Quando Guy se instalou em minha vida, tudo foi diferente porém, e o desserviço que as pesquisas trouxeram foi para o meu pacotinho. O pobrezinho amargou boas horas de fome e choro, intercalados com a solidão de um berço agreste, e o cansaço de não poder dormir no aconchego de alguém.
Imagina que os livros me disseram que ele não poderia ficar muito tempo no colo senão ia se acostumar. Peraí, é um bebê!, que passou a vida toda envolto pela mãe!, fez uma viagem traumatizante para vir à luz!, e agora, que esta num ambiente estranho, hostil, precisando do apoio da mãe pra entender e enfrentar tudo isso, eu acho de não tocar muito nele pra ele não se acostumar. A faça-me o favor!
E o tal do intervalo de três em três horas de mamada ... ou de duas em duas, que seja. O coitado sofreu de fome. Precisando ganhar peso, massa, força pra crescer saudável, e tão acostumado à nutrição em tempo integral como é a do cordão, eu venho impactar com um jejum sem graça e sem pé nem cabeça.
Imagine-se. O seu estomago roncando de fome, o que você faz?: vai comer. Eu também, qualquer um. Ninguém gosta de ver ninguém com fome. E o livro vem dizer pra mim, que não posso alimentar o meu filho quando ele tiver fome, pra não se acostumar. Ara!!!
Bem, contrariando todas as recomendações, me filho só toma banho de chuveiro, abraçado com o pai ou comigo, amarradão, dando risada – sensações inexistentes no banho de banheira.
Por fim, o mal (assim, com L mesmo) maior: dormir na cama. Todos os casais com filhos que você conhece te dirão para nunca, jamais, em tempo algum, deixar o bebe dormir na cama entre os pais, por que senão ‘nunca mais’ você tira.
Primeiro que nunca mais é muito tempo, segundo que desses casais, 80% colocou seus filhos pra dormir na cama. E por quê? Porque a mãe descansa melhor, porque é uma delicia, porque o bebe acorda mais feliz, e porque é só uma fase mesmo. Esse ‘nunca mais’ não é pra sempre de jeito nenhum. Então, por doutrina nenhuma, eu não posso me privar destes momentos, tão deliciosos, cheios de trocas, de amor e paz, e tão efêmeros.
Breno e eu somos iguais, gostamos de curtir o momento. Depois, quando chegar a hora e Guy já estiver bem aclimatado neste mundo, deixa o pau quebrar . Agente pode penar, mas coloca-o na sua caminha.
Quanto as nossas trepadas, Guy não empata não. Qualquer coisa agente derruba um colchão de casal que temos extra no chão do quarto e fazemos a nossa festa. Guy um anjo, absoluto na cama, e nós, mundanos, refestelando-nos no chão. Após isso dormimos com prazer com nosso pimpolhinho.
A despeito dos vícios e virtudes de Guy, ele é um bebê feliz, acorda rindo e vai dormir rindo. Ri até enquanto dorme. Aceita tranquilamente ficar sozinho no sofá ou na cama, olhando pro teto e brincando de olhar, conversando sozinho ou com quem pára pra falar com ele, e só chora mesmo pra avisar que esta com fome. Alias, como come!!!
Nosso anjinho esta engordando saudavelmente e de bem com a vida. E de bem com a vida estamos Breno e eu, tirando de letra cuidar de um bebê, no maior astral.
Os livros mesmo, nunca mais. Foi bom tê-los lido, só porque ler é sempre bom. Tampouco desaconselho você a lê-los. Mas na hora H, aja mais de acordo com seu instinto e com o vosso conforto. Você e o bebê são animais da natureza e como tal têm seu instinto. Confie em você. Quando nasce o filho nasce a mãe. A natureza sempre foi redonda, mesmo antes de existir a escrita e os escritores.
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Outra coisa descabida, durante toda a gravidez ouvi o conselho: durma bastante porque depois vc nunca mais vai dormir. Ora, por acaso o sono se acumula para que possamos usá-lo nos dias mais cansativos? Fiquei sem entender!!

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Entre as gôndolas do mercado, os encontros inevitaveis


Agora falando sério. Quando você está grávida, ou quando porta um bebê recém nascido, as pessoas te sorriem mais, você recebe atenção, te dão passagem, te oferecem assento, preferência na fila, recebe ajuda de estranhos. Quem nunca falou com você passa a falar, conversar, perguntar, contar sua experiência.

Aí mora o perigo. Principalmente pra mim que vivo em cidade pequena, onde a taxa de natalidade é muito alta e há muitos bebês pelas ruas. Vira e mexe eu me deparo com uma mãe e seu bebê. Inevitavelmente, hora ou outra, me pego conversando com uma dessas. (Pior: quando encontro uma, e acaba chegando outra, e outra passa com seu bebe e também pára).

O seu tem quantos meses? E o seu? Foi cesária? Ele mama direito? O meu chora muito. O meu dorme a noite inteira. Minha mãe ta me ajudando. Ele golfa toda hora? Já levou o seu à praia. Olha tem um livro ótimo....
Por mais úteis que possam ser estes encontros, principalmente pra mim que nada sei, acaba que é tudo mera especulação. Pra clube da luluzinha só falta passar receita.

Não dá pra falar de outras coisas? Como está sendo as trepadas com o marido, ou o que pretende fazer daqui a seis meses.

Se você me contar sobre algum show de rock que foi eu posso te contar minha passagem pelo pantanal há 2 anos. Eu ia acampar na margem do rio, quando no final da tarde saí de fusca pra cortar lenha. Vesti chapéu, bota de borracha, jeas e saia, uma jaqueta da jamaica e um facão na cintura. Venci as muriçocas. De noite fumamos maconha e tomamos cachaça com um paulista e uma italiana que vinham desde Alter do Chão e cruzaram a transamazônica de bicicleta. Um cachorrinho paraense os seguiu. Dormimos na rede. Anouk estava cautelosa que um jacaré abocanhasse sua bunda e dormiu acordada, abraçada a um facão. Foi um dia muito engraçado.
Porque virei mãe, agora devo ser mamãezinha, de lacinho rosinha...minha paciência pra clube da luluzinha é curtíssima.

Uma palavrinha sobre amamentação às futuras mamães


Esqueça tudo o que você já ouviu falar sobre amamentação. Eu ficava tão assustada com as narrações de conhecidas, dizendo que dói horrores, que sangra, que chora, que quase morre ... eu por muito tempo achava melhor não ter filho. E que se tivesse não amamentaria.

Seria uma pena. Fora todos os benefícios para o desenvolvimento e a saúde da criança, sem nem falar do benefício para a mãe, sobre recuperação de peso e do útero, fora a ligação afetiva que se constrói com certeza com muito mais intensidade e proximidade, fora tudo isso: quando Guy se está alimentando é como se me estivesse acarinhando. Eu relaxo, até me dá sono.

Amamento logo deitada, feito índio, que é pra aproveitar e descansar, dormir também. Guy mama o tempo todo e eu fico o tempo todo deitada. Enquanto Guy mama, eu posso ler, navegar na internet, estudar.

Tem a historia do bico do seio. Alguns são melhores outros piores, mas é muito mais questão de disposição do que físico. Se você estiver com sincera vontade, a dor se houver pode ser suprimida. Amamentar pra mim sempre foi uma delicia, um sossêgo. Jamais poderia me privar disso

quarta-feira, 13 de maio de 2009

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Tantas noites perdidas

Tantas noites perdidas, nas baladas, nas boates, nos bares e cassinos, nos becos desta vida, com gente que não sabe quem você é, nem pra omde você foi, não se incomode se quem te mantém acordado é esse serzinho com o beiço derrubado pra baixo. Ele é seu, pra você cuidar. É a maior delícia. Mó curtição.
Desejei tanto ouvir o choro de Guy nos 10 dias de UTI que hoje quando ele acorda chorando no meio da madruga, eu nao me aborreço. Antes fico admirando, achando graça em suas caretas magoadas.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Eles esticam meu peito

Eles esticam meu peito, me arranham, me mordem e me batem. Saciados, sorriem pra mim. É o que a propaganda de cartão de crédito chamaria de ‘ não tem preço'.

terça-feira, 5 de maio de 2009

Esses primeiros dias de adaptação

Entre todos os afazeres relacionados a Guy -cerca de 80% do meu tempo, e da casa - uns 7%, e pro benzao uns 11 %, sobra somente 2% pra mim. Pra mim? Esses 2% não se vê nem com uma lupa. Pra cuidar de toda complexidade que envolve a entidade Kuka eu precisaria de cada porcentagem de volta, e ainda faltaria, devido ao tempo que serve pra se dedicar ao fundamental ócio.
Dar conta de dois homens exigentes: uma deliciosa batalha sem tréguas. Representar uma puta cheirando a leite azedo é uma rapadura.

quarta-feira, 29 de abril de 2009

Pacotinho

Quando te põem no braço aquele pacotinho pra você cuidar, estão de dando uma caixinha vazia chamada amor. Você ainda não o conhece. A caixinha vai sendo preenchida aos poucos. Aos poucos é que se materializa a relação entre vocês: quando você vai entender ele e ele vai te compreender melhor.
Os sinais entre vocês.
Hoje penso nos primeiros dias e chega dá pena do pobrezinho. Eu, sem saber nada sobre ele, fiz ele sofrer atoa varias vezes.
A caixinha vai sendo preenchida nesses primeiros encontros.
É a sua caixinha cheia de amor.

sábado, 25 de abril de 2009


Depois de nascer num dia de chuva e enfrentar uma grande tormenta, Guy desembarca no calor abafado da nossa querida mãe Bahia. O avião ainda preservou o frio de São Paulo, mas quando a porta se abriu, nosso bezerro derramou suas primeiras gotas de suor. Em casa, a adaptação foi tranquila. Vem aí nossos dias de sol.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Esmeralda gosta de índios

Esmeralda gosta de índios. De sua sabedoria, de sua civilização, de sua tecnologia, da espiritualidade. Esmeraldo queria ser índio. Não que ela quisesse ter nascido índia, mas com certeza quer ser cada vez mais índio. Menos urbana, mais civilizada. Quando engravidasse, Esmeralda teria o filho no meio do mato, com a ajuda de uma parteira. Pode até ser uma cigana americana, mas parto natural. Não o normal, mas o natural. sem holofotes, enfermeiros e suas máscaras, a filmadora, a anestesia. Sem anestesia, no meio do mato, contando com a sorte que Darwim explica. Até chegou a conhecer uma parteira, numa roda de capoeira em Ilheus, trocou telefone, MSN.
Morava numa choupana sem energia ou água, numa roça no meio da floresta, uma casa engraçada, sem parede nem móveis. Um áquario de vidro, arrodeado de árvores grandes, pés de banana, orquídeas e bromélias, uma cachoeira, morcegos, cobras, escorpiões, macacos e tatus. Preguiças e lagartos. Um friozinho gostoso no litoral da tropical Bahia. Uma lua de mel interminável, um amor diário que não escondia a vontade de se tornar uma família. Destes amôres que não precisam de contraceptivos, porque de tão verdadeiro, e vivo, é fértil como todas as coisas que são vivas de verdade. Destes amôres que toda noite ensaiam o balé de seu ultimo momento, de seu amor derradeiro e que toda noite celebram a sorte de um fruto.
Eis que esmeralda engravidou e, no instante seguinte ao primeiro enjôo, no mesmo momento esqueceu como que por um passe de mágica, da parteira cigana americana, do parto no mato, e da casa engraçada. Neto de médicos não nasce no meio do mato, porque por mais índio que Esmeralda queira ser, ela é antes de tudo urbana. Esmeralda podia estar descontaminando-se, mais não estava descontaminada.
Mudou de casa, foi pra cidade. Não pra babilônia, babilônia nunca mais. Itacaré é uma cidade pequena, de 25 mil habitantes, igreja matriz, orla marítima, umas 30 praias paradisíacas, turística, lojinhas e restaurantes abertos a noite na rua do comércio. Rodas de capoeira na praça, show de arrocha e de música evangélica, e também muito reggae e forró pra que der e vier.
Esmeralda tinha uma casa na rua do comércio, com energia elétrica, água, esgoto aberto. Fogão, geladeira e TV. Notebbok e celular. Foi pra lá que esmeralda se mudou, afim não-sei-de-quê segurança, conforto e comodiade.
Não podia, imagina se, Deus me livre acontece alguma coisa no parto. E o bebe sofra, a mãe morra, os dois morrem. Ela mesma, somente neste ano de 2008 havia precisado três vezes de um hospital. A última vez, três meses antes de engravidar, Esmeralda chegou semi-morta a emergência do Hospital São Jorge, da rede particular de Ilhéus, cooperada a seu convênio. Ele estava no meio do nada quando teve os primeiros sintomas e a jornada até um hospital levou três dias. O Hospital curou-a com seus antibióticos, mas até hoje não se sabe o que teve Esmeralda. Não era o caso de doença rara ou desconhecida, mas de incompetência médica ou, no mínimo, ambulatorial. Foi pra casa sem saber o que teve, e hoje, está em casa, pensando no que poderia acontecer se seu filho nascesse num hospital como esse. Sem São Paulo não dá.
A gravidez foi ótima, de uma preguiça ociosa gostosa somente permitida pela tranqüilidade da alma. Sol pela manhã, praia, comida natural , como o era sempre, vitaminas para o bebe, prioridade nas filas e nos assentos.
No oitavo mês Esmeralda foi pra casa dos pais, no interior de São Paulo, pra dar à luz o bebê. Se fez tanto ultrassom e visitou tanto a médica era porque tinha agora um certo medo do parto normal, desses em que se sofre horas as dores dentro de um hospital, pra que, na hora que seu filho nascer, eles o peguem antes de você e o levem, e lavem, e só te devolvem se acham que ta tudo bem. De certo que quando nascer, vão o levar, o lavar e devolver só quando der, mas pelo menos não sofreria horas a dor do parto, e o bebe não nasceria com o cordão enrolado no pescoço.
Esmeralda fez tanto ultrassom e visitou tanto a médica que a médica decidiu que o bebe já havia alcançado os 38 meses, tempo que, pra sua medicina, é suficiente pra formação completa e perfeita do feto.
Era onze de março e o tempo tinha virado, amanheceu chuviscando naquele dia que seguia tantos outros de sol. A mala estava pronta e todos estavam ansiosos pra conhecera o filho de Esmeralda.
Às nove e trinta e quatro da noite, a sala de parto parecia ume estádio, pois além dos holofotes, dos médicos e enfermeiras, suas máscaras, a filmadora e a anestesista, a platéia também estava lá: pai e avós.
Levaram o bebê e não trouxeram mais. Esmeralda demorou 24 horas pra vê-lo e sete dias para pegá-lo. Ele não foi pra casa quando nasceu, foi pra UTI. Quem foi pra casa foi Esmeralda, sem filho, sem barriga, sem moral. Quem era Esmeralda pra querer ser índio? O que teve foi que ele não tava na hora de nascer. Tava quietinho, bem, seguro e bulindo muito na barriga. Quem era Esmeral pra interromper?Quem era a médica pra dizer que interromper é natural, que a fruta dá antes do tempo? Que a evolução da vida em milhões de anos é menos sábia que uma medicina ceintífica centenária.
Quem sofreu foi o bebe, que foi puxado a ferro, tomou mais de 35 tipos de remédio pra fazer o que a natureza faria sem nenhum, ficou 10 dias com um tubo enterrado na goela, numa sala de luz de geladeira, cheia de bips e twins, pessoas vestindo luvas pra tocar nele, e ainda nasceu antes do dia de seu aniversário. Ninguém jamais saberá o dia do aniversário dele.
Graças a Deus foi que o bebê no final se saiu bem, sem seqüelas nem maiores complicações. O que ele deu foi um susto mesmo, um baita susto pra mostrar a que veio, pra não deixar que a mãe desvie-se do caminho a que vai, no qual recebeu ele, pra que não se esqueça dos índios, muito menos em nome dele, e que dali pra diante tivesse mais responsabilidade. Era uma viva alma pra Esmeralda cuidar. Agora Esmeralda é mãe, sem dores, sem medos, sem vaidade. È um ser que subiu alguns degraus pra mais perto do céu. A única coisa que ela deseja com a própria vida é a saúde do filho. E só agora, com Guy nas mãos, ela entendeu o que é isso.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

A jaca



A jaca é pesada, suas cracas ofendem a pele, seu visgo escorre e gruda, e tudo gruda nele. Pra carregar uma jaca durante uma longa caminhada, só gostando muito mesmo. De repente, durante o caminho, você se pergunta por que cargas d’água trouxeste essa fruta. Quando você parar para saboreá-la, vai compreender tudo porem.
Ao partir sua casca grossa, ainda que com dificuldade, o cheiro de jaca madura começa a tomar conta do ambiente e da alma, e você poderá reafirmar sua gana de carregar a jaca. Quando morder aquele bago da jaca dura, madura, vai ter certeza do que fez. A jaca é forte, nutritiva, doce, deliciosa. E ainda vai querer carregá-la por todos caminhos quanto andar.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

O pé!


Meu bem é o pé de pau. Uma árvore frondosa, grande, pesada, real. Grossa pela sua natureza. Delicada, sensível, minusiosa pela sua inteligência instintiva. Sombra farta, em sua dádiva integral. Dura, resistente,decidida, bem plantada. Mortal enfim.

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Manancial de vidas



Hoje teve a andada dos caranguejos. O espetáculo motriz da vida dos mangues, a grande festa de gala, quando todos os caranguejos, fêmeas e machos, saem para se encontrar. Saem dos mangues, entram nas roças, sobem os esbarrancados, passam pelos quintais, se cruzam. Vão pra lá, vem pra cá, na eterna dança do acasalamento.
O mangue é o berço de toda vida marinha. Há quem se engane com seu cheiro de podre, com sua lama imunda. O cheiro é do que há de mais puro e limpo na natureza. Cuidado com seus pés impregnados da cidade pra não imundiciar essa lama higiênica.
A andada acontece na mesma época, ano após ano, geração após geração. Antigamente a andada atraía assim de gente, seus sacos, caçuás e manzuás, charretes, cômbis, burros de carga, tantos opressores do amor no manguezal, que se aproveitaram da dança do acasalamento para lucrar. Antigamente tinha muito caranguejo.
Apesar da poluição, da opressão e da caça, o amor no mangue persistiu. Persiste. Seu ventre esta repleto de carangueijinhos, aratuzinhos, guaiamunzinhos, peixinhos, gentinhas. O mangue é o ventre do mar. A lama é o ventre do mangue. Meu ventre na lama.
***
Eu sou a terra, sou o ventre, sou a lama - fedida e pura. Dentro de mim fincam suas raízes as árvores. Pra fora cuspo seu fruto. Pra fora da terra, para a vida, para o mundo, pra o que puder devorá-lo. Pra cair no chão e se esbagaçar. O fruto do amor entre a terra e um pé de pau.