segunda-feira, 31 de agosto de 2009

O curioso caso do vovô eterno

Outro dia liguei pra minha mãe e ela me relatou seu atual drama. Está com meu vozinho em casa. Ele quebrou – desfacelou- o fêmur e não vai mais poder andar. Mamãe esta envolta em fraldas geriátricas e cocôs, dando de comer na boca e limpando as sobras, dando banho, vestindo e despindo o velhinho de 90 anos. Ela não pode mais sair de casa ou fazer coisas outras que não seja zelar. Eu disse, então tudo bem, não é muito diferente da minha rotina com Guy.
É que os velhinhos são nada mais que bebezinho de novo. Ou bebezinhos ás avessas. Estão voltando para o útero, voltando para a terra. Diluindo-se nos elementos dos quais ele é feito.
Todo mundo é louco por um bebezinho fofinho, achando graça quando ele peida ou baba, mas ninguém quer saber de um velhinho empoeirado, vivido, e que já deu, pra você e para o mundo, o que tinha que dar.
Para o bebê agente faz tudo de bom grado porque agente dá de comer e vai vendo ele crescer. O vovô você dá de comer pra ver fenecer. O bebê enroladamente vai aprender a falar e cada vez mais vai se comunicar com você. O vovô vai desaprender a falar, e quanto mais você se esforça para compreendê-lo, mas sem esperança você fica. Dá até vontade de fingir que entendeu e sair de fininho. Quando o bebê dá seus primeiros passos, você logo entende que ele está indo para o mundo, vai te encher de alegrias e orgulhos. O velhinho você pega na mão pra ele desaprender a andar. No auge de seu peso morto e pesado, em ti vai se apoiar. Quando a criança for à escola e a tia disser que ele é muito inteligente, você imaginará o futuro brilhante que ele pode ter. E todo esforço será recompensado. Ele vai te pegar no colo e dizer, mamãe você é a melhor mãe do mundo.
Enquanto o bebê tem o mundo pra conquistar e te dar de presente, o velhinho já não vai dar em nada. Pra ele, todo se esforço, seu tempo, paciência e dinheiro são exclusivamente para que não se sinta abandonado em seu leito de morte.
Nós deveríamos aqui fazer um pacto, e já o digo por mim: o de não prolongar a vida de um velhinho moribundo. Quando o galho secou, por mais que ainda haja folhas verdes, não adianta botar água no vaso. Esforcemo-nos apenas para evitar-lhe a dor e o sofrimento, mas esqueçamos a tecnologia e a ciência se for pra prolongar uma vida cansada, fazer pegar no tranco um órgão falido. Obrigá-lo a continuar funcionando a qualquer custo, só porque julgamos que deste lado é melhor.
Deixemos ir os velhinhos, seguir o curso da natureza, e apenas estejamos lá para segurar-lhe a mão quando fizer a passagem. Ele vai saber que não está só, e que tudo o que ele fez por nós valeu a pena de verdade. Seja lá o que ele tenha acertado e errado, foi bom. Muito obrigada por tudo, pode deixar que daqui vamos sozinhos.
O vovô foi esquecido neste mundo. Tem um câncer de próstata a mais de 10 anos, e este nunca se manifestou. Seus pequenos sintomas foram sempre curados com ervas, unguentos e compressas de argila. Na foto de debutante da mamãe, ele já era velho. Ele sempre foi velho. Acho que nasceu assim. Era o mais velho e capenga de todos os quatro avós, mas foi no enterro de todos os outros três. E você acha que ele tem um pé na cova? Ledo e Ivo engano, ele só quebrou mesmo o fêmur, nada além disso. Estamos preparando um testamento para deixar pra ele quando morrermos.
Pode ir em paz vovô, você não vai precisar mais me amarrar os sapatos. Vai ser simples pra mim, talvez nem tanto pra você, como naquele primeiro dia de aula, quando você deixou aquela mulher me pegar pela mão e me levar pra dentro daquele corredor infinito, aquela incógnita. Você me acenava sorrindo, eu ia chorando, perguntando por que é que eu não podia simplesmente ficar com você.
Pode parar de chorar vovô, que quando chegar lá você vai ver que é legal.
Quisera os velhinhos morrer como Benjamin Button, no colo da mulher amada, como um bebe que adormece tão serenamente que um simples sopro de vento leva-o a um lugar muito, muito menos sofrível.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

A bruxa e a estrada, um velho caso de amor

Era sete da noite. Guy, cansado de uma tarde na praia, mamava bem espaçadamente, de olhos fechados, imóvel e sereno, sinal que já ia dormir. Breno subiu as escadas reclamando de dor de cabeça e se deitou, sinal claro de que já ia capotar. Eu, maquiavelicamente, fiquei bem quietinha. Não buli com Guy, não puxei assunto com Breno. Instintivamente detectei uma oportunidade rara: a de ficar sozinha. Nossa! quantas coisas legais eu poderei fazer quando ficar sozinha, coisas que eu nunca mais fiz, que adoro fazer, e que já até me esquecera. Mas agora! agora parece que vou ficar sozinha-inha-inha de marré-de-ci.

Confirmado. Guy capotou e Breno dormia digamos, feito um bebê. Levantei da cama bem de fininho, sem fazer ruído, sorrateira como um pé de pano, temerosa como quem vai fazer algo de errado. Desci as escadas e quando me vi sozinha mesmo, sabem o que eu fiz?

Nada, maravilhosamente não fiz nada. Aliás, fazer nada é uma atividade profundamente necessária. Sim, que tomei um chá, me depilei, vi o jornal, rodei pela casa, me joguei no sofá. Mas acima de tudo, pensei. Pensar denota tempo e uma certa dose de ociosidade.

Vi que em mim mora ainda aquela bruxinha maluca, doida, incauta, sedutora. Que vive a lucidez e rebentos de criatividade na solidão. E percebi que ela ainda tem o poder de me levar daqui, que ela planeja, aguarda a hora certa. Calma e maquiavélica, ela ainda vai me tirar do sossêgo e me levar dar uma banda pelo mundo. Vai bagunçar toda a nossa vida, bagunçar o que já está certo em mim. Vai gerar polêmica com seus quereres irredutíveis. Vai deixar muita gente preocupada.
Tirar-me do lugar comum de uma vida de casamento terá um efeito certeiro: a própria sobrevivência deste.

Quer saber, não vou fazer a menor força para amarrá-la.